19 de novembro de 2009

Durma, Charlie.. durma.



E se por um acaso você estiver perto, não a ajude. Ela sabe que vai doer. Ela sabe quantas pessoas irá machucar. Não, espere. Fique calmo. Tenha fé. Ela gosta da dor. Ela gosta da leve dança que seu estômago faz quando vê que acabou de magoar profunda e inteiramente uma pessoa. Ela gosta. Ela gosta de ouvir as músicas. Como assim que músicas? Você já as ouviu, e ainda as ouve, não é? Menino, eu sei de tudo o que ela é capaz. Não minta para o velho. Músicas? Oh, sim.. voltemos as músicas...

Pois bem, ela gosta da sintonia frouxa que se forma. Das palavras vazias.. Do correr, do gritar. Ela gosta das cores que o céu mostra durante sua batalha. Ela gosta.. Do sonho. Lembra-se do sonho Charlie? Claro que lembra. Como esquecer? Foi bastante ruim pra você? Claro que foi, não é? Então deixe-a em paz quando chegar a hora. Ela não vai gostar de ser ajudada. Você a conhece quando está contrariada, não é? Melhor do que ninguém? Mesmo? Porque? Ah, claro, ela era sua. Assim como era de toda a legião de adolescentes pedintes de atenção. Ela também já foi minha, Charlie. O que? Desculpe, é a surdez, fale mais alto, meu filho. Ah, não. De forma alguma. Eu a possui quando era jovem. Sim, já fui jovem. Difícil de acreditar, heim?! Sim, ela já era viva. Já era linda. Já era arrasadora...
Por Deus, menino, também não é preciso gritar! Vá lá, sou um velho, não um moco desmiolado. Desmiolado, talvez, mas moco ainda não (não inteiramente). Sei que é impossível que ela já fosse desejável quando eu era um mero adolescente, mas por acaso essa mulher é algo concreto? Por acaso ela é possível? Ela não é humana. Ela é a mistura do desejo com a vontade de ter. É suja, forte. Fatal. E é por isso que não pode ajudá-la, entende? Não entende? Ora, por favor, deixe de exclamações lamuriosas. Sabe muito bem o que acontecerá. Olhe pra mim.. Não passo de um velho. Um velho que anda por ai, apoiando-se desgraçadamente em sua bengala também velha. Que coloca o seu único casaco, e suas calças cáqui (Eu sei, ninguém usa cáqui, me dê uma calça com uma cor melhor, então, fedelho reclamão), também velhos. Tudo é velho nesse velho que vos fala, Charlie. E mesmo assim, esse velho sabe que você não deve ajuda-la. Esse velho sabe que, se ajuda-la , o pobre Charlie terá seus sonhos e anseios reduzidos a pó. E não passará de um velho, com suas roupas velhas, vagando por ruas (e vidas) descaradamente jovens. É isso o que quer, Charlie? Não? Pois bem, ouça o velho. O que? Estar lá, pra te lembrar de não ajuda-la? Não posso, meu menino, não posso. Mas estou aqui agora.. Segurar sua mão até dormir? Claro, meu filho. Ah, fique despreocupado, não contarei pra nínguem.. será o nosso segredo. Agora durma, Charlie.. durma.